Era uma vez Brasil

Indicações para uma conversa entre a História e a Literatura

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Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler.

Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.

JESUS, Maria Carolina de. 2014, pp. 24.

 

Início de ano é um período ainda mais especial para realizar novas leituras. Pensando nisso, decidi escrever sobre a relação valiosa entre a História e a Literatura e indicar obras literárias e historiográficas que dialogam.

Para traçar a relação entre Clio e Calíope é necessário estabelecer alguns conceitos fundamentais: História, Historiografia, Historicidade e Fonte Histórica. A começar pela História, minha disciplina e ciência, principal lente pela qual vejo o mundo, Marc Bloch diz: “Ciência dos homens’, dissemos. É ainda vago demais. É preciso acrescentar: ‘dos homens, no tempo’.” A História é uma ciência, segue um método sistematizado, passível de validação e de crítica que tem por objeto os seres humanos em suas sociedades circunscritos num tempo.

Historicidade por sua vez refere ao contexto histórico, em qual contexto se insere aquilo que se analisa. A Historiografia é, literalmente, como nos informa Michel de Certeau “a escrita da história”, o texto produzido a partir do método científico da História analisando seu contexto é chamado de historiografia. Fonte é o registro histórico de um tempo, acionando mais uma vez Bloch: “[…] tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele”. Nesse ponto insere-se a literatura.

A literatura insere-se como uma fonte histórica, ou seja, como um registro de um tempo que nos informa sobre seu autor/autora, sobre seu contexto histórico (historicidade), sobre o imaginário e a cultura de uma determinada sociedade no tempo em que a obra foi produzida. Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso Pereira afirmam: “Para historiadores a literatura é, enfim, testemunho histórico.” Apesar de ser ficcional, o que a princípio faria da literatura uma fonte não confiável para a História, toda narrativa se constrói a partir da realidade dos indivíduos e de suas sociedades.

Said, grande intelectual egípcio-palestino, afirma: “Ninguém nuca descobriu um método para separar o erudito das circunstâncias da vida, do fato do seu envolvimento (consciente ou inconsciente) com uma classe, com um conjunto de crenças, uma posição social, ou da mera atividade de ser um membro da sociedade.” Em outra passagem ele é, ainda mais, direto e contundente: “Um texto literário fala mais ou menos diretamente de uma realidade viva.”

Sandra Jatahy Pesavento, grande historiadora brasileira, é categórica na riqueza que a literatura oferece à História e vice-versa: “[…], a literatura diz muito mais do que outra marca ou registro do passado.” Em outro trecho muito precioso: “[A literatura] se revela fonte do que poderia responder às suas perguntas sobre as representações construídas sobre o mundo pelos homens do passado.”

Pensar a literatura, historicamente, mesmo sem as ferramentas epistemológicas de um historiador, é confrontar-se com a evidente verdade de que tudo que se refere aos seres humanos são construções históricas, dito de outra maneira, quando lemos um livro do século XIX, por exemplo, percebemos que os valores, as crenças, as ideias eram diferentes, que nada é natural, que tudo que constitui a vida é uma construção social, a forma como vemos a natureza, o corpo, o trabalho, o amor, a sexualidade, o tempo e tantas outras coisas da vida; quando lemos livros de outro tempo nos deparamos com o fato de que “as coisas nem sempre foram assim”. Entender essa questão é acreditar na possibilidade de que o presente é transitório e de que outros modos de viver e estar no mundo são possíveis.

Inicio, aqui, minhas indicações de literaturas e historiografias. Começo com a obra “A Tempestade” de William Shakespeare (280 páginas), uma peça teatral. Nessa obra tão famosa do dramaturgo inglês temos uma figura muito interessante, Calibã.

“Em uma ilha desabitada que pertencia a uma velha bruxa, Próspero, o antigo duque de Milão, provoca uma tempestade sobrenatural que naufraga o navio onde se encontra seu irmão, que lhe usurpou o título real. É o primeiro passo de um projeto de vingança que sofre diversos imprevistos ― em parte graças à figura misteriosa de Calibã, um dos personagens mais instigantes do autor. Escravo deformado, filho da bruxa que governara a ilha, seu ódio pelo duque é interpretado pelos críticos contemporâneos à luz da revolta dos povos colonizados.” (Itálicos meus) Um texto historiográfico que autopsia, brilhantemente, essa obra é o capítulo 1 do livro “A Hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário” dos historiadores, Peter Linebaugh e Marcus Rediker, o capítulo se chama: “1. O naufrágio do Sea-Venture”. Os autores expõem: “Shakespeare reconheceu a verdade da expropriação em A tempestade, ao fazer com que o ‘selvagem e deformado escravo’ Caliban reivindique a posse da terra diante do seu amo, o aristocrático Próspero: […].”

Minha segunda indicação é Helena (280 páginas) do “Bruxo do Cosme Velho”, nosso grande escritor, Machado de Assis. “Publicado em 1876, Helena pertence à primeira fase da obra de Machado de Assis. No romance, a protagonista de origens humildes é reconhecida em testamento como filha e herdeira do conselheiro Vale, um homem importante da elite carioca do Segundo Império. Após o espólio do pai vir à tona, Helena passa a viver na mansão da família do Vale com uma tia e Estácio, filho legítimo do conselheiro. Estácio não apenas aceita a meia-irmã como lhe devota um profundo e crescente carinho, por ela correspondido. Ao drama de incesto abordado por Machado no romance, soma-se ainda o tema das conflituosas relações de classe no Brasil do século XIX, coroados por um final surpreendente.” (Itálicos meus).

É exatamente essas questões de classe, escravidão e outros aspectos importantes da obra que Sidney Chalhoub destrincha com melindre e criatividade no capítulo 1 do seu livro “Machado de Assis Historiador”. O capítulo intitula-se: “1.Paternalismo e escravidão em Helena”, na abertura desse interessante capítulo o historiador Chalhoub nos escreve: “Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX.” Poderia indicar todas as obras trabalhadas nesse livro mas sigo para minha próxima indicação na busca por diversidade de autores e temas.

Publicada em forma de livro em 1902, a novela Coração das trevas (184 páginas) é um dos maiores clássicos da literatura do século XX, em que o leitor acompanhará “o mergulho do protagonista Marlow pelos meandros da selva africana e das perversões mais profundas do projeto de exploração colonial. A missão de Marlow é resgatar Kurtz, um comprador de marfim cujos métodos acabam por se revelar inadequados para a empresa mercantil que o contratou.” (Itálicos meus)

A novela “O coração das Trevas e o romance “Nostromo” ambos de Joseph Conrad foram minhas fontes para o meu trabalho de monografia. A obra de Conrad é, na minha interpretação (referenciada por Edward Said) muito ambígua, apesar da crítica ao processo de exploração do Congo, não deixa de revelar seu olhar eurocêntrico sobre a situação, não surpreenderá, portanto, que a minha indicação complementar à novela de Conrad seja um tópico dentro do capítulo 1 do livro, do já citado Edward Said, “Cultura e Imperialismo”, o tópico em questão é: “Duas visões em Heart of darkness [O coração das trevas]”. O trecho a seguir é elucida essa ambiguidade: “Portanto, não é paradoxal que Conrad fosse imperialista e anti-imperialista: progressista quando se tratava de apresentar com destemor e pessimismo a corrupção autocofirmadora e auto-enganosa do domínio ultramarino; profundamente reacionário quando se tratava de conceder que a África ou a América do Sul pudesse algum dia ter uma história ou uma cultura independente, que os imperialistas abalaram violentamente, mas pela qual foram, afinal, derrotados.”

Para encerar indicarei uma obra analisada, brevemente, por Sidney Chalhoub em um verbete do “Dicionário da Escravidão e Liberdade” organizado pela Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes, o verbete chama-se “Literatura e escravidão”, a indicação é “Úrsula” (224 páginas) de Maria Firmina dos Reis. “Tancredo e Úrsula são jovens, puros e altruístas. Com a vida marcada por perdas e decepções familiares, eles se apaixonam tão logo o destino os aproxima, mas se deparam com um empecilho para concretizar seu amor. Combinando esse enredo ultrarromântico com uma abordagem crítica à escravidão, Maria Firmina dos Reis compõe Úrsula, um dos primeiros romances brasileiros de autoria feminina, em 1859. Por dar voz e agência a personagens escravizados, é vista como a obra inaugural da literatura afro-brasileira. Retrata homens autoritários e cruéis, mostrando atos inimagináveis de mando patriarcal e senhorial em um sistema que não lhes impõe limites”.

Segundo Sidney Chalhoub: “Todavia, há em Maria Firmina dos Reis um intuito de representar a voz dos cativos que não encontra paralelo em outras obras literárias produzidas no país no período.” Chalhoub comentará nesse verbete várias outras obras: romances, contos e poemas.

 

Professor Paulo Sérgio da Silva Souza

 

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Obras disponíveis em domínio púbico:

A Tempestade de William Shakespeare, 1611:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7392

Helena, Machado de Assis, 1876:

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2091

 

Referências Bibliográficas:

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CERTEAU, Michel. A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de M.(Orgs.). A História Contada:  Capítulos de História Social da Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Mundo como Texto: Leituras da História e da Literatura. História da Educação, ASPHE/UFPel, n.14, p 31-45, set. 2003. Disponível em:

https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/30220/pdf

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. “1. O naufrágio do Sea-Venture”. In: A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atântico revolucionário. Tradução Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 17-45.

CHALHOUB, Sidney. “1. Paternalismo e escravidão em Helena”. In: Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 17-57.

SAID, Edward W. “1. Territórios sobrepostos, histórias entrelaçadas: Duas visões em Heart of darkness [O coração das trevas]”. In: Cultura e Imperialismo. Tradução Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 51-64.

CHALOUB, Sidney. “Literatura e escravidão”. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (Orgs.). Dicionário da Escravidão e Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, pp. 298-304.

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