Era uma vez Brasil

A EMERGÊNCIA DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

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“Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista” – Angela Davis

   A célebre e já clássica frase proferida por Angela Davis é, antes de tudo, uma convocação ao mundo. Convocação essa que traz ao centro umas das principais pautas do milênio: a luta antirracista. E o que seria esse antirracismo tão falado nos últimos tempos, sejam por ativistas, estudiosos, mídias e até a população em geral?

Antirracista é o indivíduo que se insere, deliberadamente, em um processo de ação e oposição ativa ao racismo.  O objetivo do antirracismo é desafiar a ordem vigente, que normatiza e perpetua práticas racistas dentro de uma sociedade estruturalmente desigual, para exigir, de maneira ativa, a transformação de políticas, comportamentos e crenças que fortalecem a discriminação.[1]

  Logo, entendemos que ao assumir uma postura antirracista estamos participando de maneira consciente e atuante de uma mudança estrutural na sociedade. Nesse contexto, não há espaço para “ficar na arquibancada”, torcendo para que tudo dê certo, a lógica é inversa, pois você faz parte do time e precisa “jogar”, seja na posição que for, para que possamos inverter a lógica cruel do racismo.

   E nós, como educadores, professores e profissionais inseridos no meio educacional, como podemos atuar numa perspectiva antirracista? Como esse compromisso com o futuro chega à educação? Umas das primeiras coisas que é necessário pautar, é que, antes de qualquer coisa, essa é uma escolha política de vida e que, portanto deve balizar os nossos posicionamentos em todas as esferas de nossa existência. Não é mais concebível que consigamos pensar em mundo “melhor” sem encarar de frente as mazelas que o racismo traz cotidianamente a todos os seres viventes em todas as partes do globo. Tirar a venda dos nossos olhos talvez seja a primeira parte da solução. Quando nos aproximamos de um ângulo micro, a partir da realidade brasileira, temos que ter ainda mais consciência e cuidados, pois como nos informa Lélia Gonzalez, existe o “racismo a la brasileira”[2]. Esse racismo muitas vezes é sutil e escamoteado, como em vivências diárias, nos olhares a cabelos e à estética negra, mas ao mesmo tempo cruel e verticalizado, como nas ações policiais de genocídio da população negra. Sim, estamos em um terreno desigual, desfavorável e de dívida secular, logo a educação é um meio vital para uma verdadeira mudança.

   Sendo a educação antirracista um bem mais que necessário é preciso que tomemos como ferramenta de luta estratégias eficazes, pois é sabido que na maioria das vezes não encontramos espaço e incentivos no universo educacional. Recorramos às palavras de Lélia Gonzalez: “organização já!”[3]. Nesse caminho, buscaremos, dentro de uma infinidade de possibilidades, levantar algumas táticas com o intuito de organizar o percurso de nossa empreitada no cosmos educacional.

   Começaremos com uma questão estrutural e teórica que dita as relações raciais brasileiras em todas as suas dimensões, o onipresente mito da democracia racial, que tem como o seu principal interlocutor, o pesquisador Gilberto Freyre, que defendia que o Brasil era um país em que prosperava “(…) a já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem: uma prática que nos impõe deveres de particular solidariedade com outros povos mestiços”. [4] Essa falácia se perpetuou e encontrou esteio na retórica do já mencionado “racismo a la brasileira”, de maneira que se acomodou em um lugar confortável. Quantas vezes não ouvimos dizer que o racismo no Brasil é algo pontual e personalista, e que na verdade vivemos num país miscigenado, sendo, então, impossível haver uma verdadeira guerra contra a população negra? Acho que inclusive já cansamos de ouvir um pouco de tudo isso.

   Nesse ponto, o importante é ter noção de que a epistemologia e experiência histórica de pensadores e pensadoras negras, do movimento negro, em sua diversidade, e de inúmeros movimentos sociais já superou e respondeu a essa questão. Mas como podemos inseri-la e desmitificá-la no ambiente educacional? Um dos recursos que sempre me pareceu eficaz foi a apresentação de dados obtidos por meio do próprio Estado brasileiro. Ao constatarmos que a população negra brasileira está sub-representada em todas as esferas de poder e privilégio, enquanto é líder em todo os índices de precariedade, podemos demonstrar a fragilidade da falácia da democracia racial. É no choque que podemos trabalhar com nossa realidade e nos aproximar da experiência histórica do próprio alunado. Não é incomum que neste momento comecem a ser levantas questões, indagações e indignações sobre as tensões e faces racistas que eles e elas enfrentam cotidianamente. Com o debate aberto, é possível acolher, refletir e estruturar demandas, o que nos leva a outra proposta interessante.

   Nossa segunda possibilidade de intervenção gira em torno da valorização da história, saberes e legado do povo negro. Para tanto, é central que possamos destacar o protagonismo negro na História de maneira que avancemos para um terreno em que a população negra possa ser lida por um viés justo e na longa duração. Entendemos que a denúncia e o debate do maior crime da humanidade, a escravidão, não devem ser negociados ou relativizados, no entanto, não queremos que nossas crianças cresçam achando que a história de seu povo se limita a isso. Por isso, conhecer trajetórias, sejam individuais ou de grupos, a produção do conhecimento negro e as sociedades e contextos em que somos protagonistas é vital para a valorização, autoestima e fortalecimento de uma agenda antirracista dentro e fora do âmbito educacional. Que tal experimentar começar uma aula apresentando uma personalidade negra do século XV ou XVI? Ou uma música de uma cantora negra?  Quem sabe uma tecnologia desenvolvida por alguma ou algum cientista negro? As possibilidades são infinitas e os resultados também.[5]

  Aqui, tentamos contribuir modestamente com possibilidades para a inserção de uma agenda antirracista no ambiente educacional. Entendemos que apresentamos algumas perspectivas num mar de opções que podem variar conforme o contexto em que se está inserido. Nesse sentido, reiteramos a fala que deu mote e iniciou esse texto: “Numa sociedade racista não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.”

   Davis nos deu a senha e a convocação para um caminho essencial e sem volta. Cabe a nós escolhermos nosso lugar no “campo de luta” do modo mais combativo possível, pois sabemos que o racismo não dorme e nós também não podemos dormir enquanto ele não for extinto.

 

Por Mayara Santos 

Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

E-mail: maypjs22@hotmail.com

Instagram: @mayara.priscilla22

 

 

REFERÊNCIAS

[1] ECYCLE, Isabela. Ver em: https://www.ecycle.com.br/antirracista/. Consultado em 01 de junho de 2021.

 [2] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, p. 188, 2020.

[3] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, p. 250, 2020.

[4] GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Democracia Racial: o ideal, o pacto e o mito. Estudos Sociológicos, p. 8, 2002.

[5] Uma ferramenta que indicamos é o Método Apaoká. Ver em: PAIXÃO, Victoria Moreira da. Apaoká: a história de mulheres negras para a difusão da memória do Estado da Bahia. 22 f. Prêmio Fundação Pedro Calmon, 2021. Salvador, 2021.

Imagem da capa: freepik.

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