Era uma vez Brasil

COTAS RACIAIS: UMA POLÍTICA PÚBLICA QUE NÃO SAI DO DEBATE

usp cotas

     Por Victoria da Paixão

     Seja na educação, na geração de empregos ou na política de partidos, a cota racial é um debate delicado no Brasil. O país com o maior número de negros (a soma de pretos e pardos) fora do continente africano, vê esse debate como problema desde o fim da escravidão, o que antes era chamado de “o problema negro” hoje é falado como “a questão das cotas”, mas o que torna esse debate tão delicado? Olhando ainda para nossa história, a construção da sociedade brasileira foi baseada no mito da democracia racial, onde a valorização da mistura vem como uma forma de mascarar o racismo e deslegitimar as lutas por equidade racial. Assim, as pautas raciais são colocadas à margem em uma tentativa de desassociar os problemas de desigualdade de classe com a cor daqueles que compõem a maior parcela da população pobre. 

     Nesse sentido, em 2022, ano que se completa 10 anos da lei de cotas para as universidades públicas e o ano das eleições presidenciais, vemos dois fenômenos que colocam “a questão das cotas” em debate. O primeiro: 31 das 70 propostas para modificação da Lei 12.711/2012 quer modificar ou retirar as reservas raciais. Segundo: pela primeira vez na história temos mais candidaturas negras do que brancas. Com essas situações podemos entender como o mito da democracia racial ainda se faz presente na mentalidade dos políticos que representam os brasileiros. A Lei 12.711/2012 foi uma vitória dos movimentos sociais e conseguiu ter efeitos que foram debatidos ao longo deste ano pelos defensores da ampliação da lei, como o aumento de jovens negros e pobres nas universidades, uma produção cientifica mais diversa e possibilidade de ascenção social. No entanto, ela não garantiu uma mudança significativa na estrutura social. Nesses mesmos argumentos, foi abordado que a maioria desses jovens ingressam em cursos que não são valorizados, e continuam sendo minoria em cursos como medicina, direito e engenharias. Também trazem que a população negra não está em cargos de poder nas empresas ou na política, o que nos leva ao segundo fenômeno.

     Durante 2020 o fundo eleitoral sofreu algumas modificações, além das cotas de destinação do dinheiros para candidatas mulheres cis ou trans, foi reservado uma cota financeira para candidaturas negras em 2022. Foi replicado assim um episódio que já acontecia em relação às universidades: pessoas socialmente brancas se declarando pardas com o intuito de que seu partido recebesse benefícios. Voltamos aqui com o problema da democracia racial e suas ramificações, Portugal implementou uma colonização agressiva no Brasil com tentativa de extermínio da população indígena, essa também escravizada, e escravização de povos africanos. 

     Contudo, o início da república não fez com que as políticas de Estado de escravização e extermínio acabassem, mas sim tomassem outras formas. Uma delas com a dificultação de acesso à educação, saúde, a terra e empregos, usando a desculpa da meritocracia, fazendo com que negros e indígenas ficassem cada vez mais marginalizados na nossa sociedade. Um outro lado perverso é falar da mistura de raças como algo consentido e igualitário entre as raças, quando foi feito por meio da violência contra as mulheres racializadas. Assim, pessoas lidas como brancas, com seus privilégios, costumam recorrer a mistura racial brasileira para sabotar políticas públicas que buscam a equidade, tanto para dizer que elas não são necessárias, como ocorre com a Lei 12.711/2012, tanto para ocupar vagas destinadas a esses grupos racializados, como está ocorrendo agora nos partidos eleitorais, com a desculpa de uma bisavó negra ou indígena. Nos dois casos há uma tentativa de silenciar as desigualdades dentro do país e deslegitimar a contínua luta dos movimentos sociais.

     Enquanto pessoas brancas continuarem pregando o mito da democracia racial e buscando formas de manutenção dos seus privilégios, impedindo que pretos, pardos e indígenas tenham o mínimo de chance em qualquer tipo de disputa, as cotas raciais não podem sair do debate público. Estamos falando aqui de pessoas que tem como ideologia o deixar morrer daqueles que foram privados, desde 1500, de ter acesso à sua terra. Estamos falando de políticos que não estão preocupados com crianças de colégios públicos sem merenda decente ou uma sala de aula digna para aprender. São essas pessoas brancas que não apontam armas, mas deixam pessoas indígenas e negras morrerem por falta de acesso às políticas públicas, para garantir a manutenção de seus privilégios. 

     As cotas raciais estão em debate e precisam ser ampliadas, mas não só isso. É preciso um sistema que garanta que as pessoas privilegiadas não tomem esses locais e esvaziem as conquistas dos movimentos sociais. Precisamos de mais 10 anos da Lei 12.711/2012, com universidades que fazem heteroidentificação à autodeclaração como pessoa negra (preta ou parda), como faz a Universidade Federal da Bahia; e que esse exemplo seja expandido para os partidos políticos. 

     A política do deixar morrer ainda está presente, mas como disse a escritora Conceição Evaristo:

“Combinaram de nos matar. Mas nós combinamos de não morrer!”

Victoria da Paixão é licenciada em História pela UFBA, integrou o PIBID (2017), e fez residência pedagógica (2018-2019). Ganhadora do prêmio Fundação Pedro Calmon pela lei Aldir Blanc na categoria memória com o trabalho “Apaoká: a história de mulheres negras para a difusão da memória do Estado da Bahia”. Faz parte do grupo de pesquisa Milonga, é Coordenadora da Comissão da Promoção por Igualdade Racial do IBADFEM, e colunista do Era Uma Vez Brasil.

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REFERÊNCIAS

[1]  Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE

[2] Cisgênero é o indivíduo que se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu.

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