Era uma vez Brasil

Não olhe para a ilha: o medo do Haitianismo

haiti

Não olhe para a ilha: o medo do Haitianismo

Por Victória da Paixão

 

Como professora de história, pouco sei sobre a ilha do Haiti. O meu primeiro contato com o país foi por conta das catástrofes naturais, com imagens de miséria na televisão e a falta de contextualização histórica. É como se o jornal avisasse: “não olhe para a ilha, aqui só tem miséria e dor”. Recentemente descobri que não é só dessa ilha que devemos ter medo.

Na faculdade, por conta dos movimentos negros, descobri que o país das montanhas conquistou sua independência por meio de uma revolução liderada por escravizados entre 1791 e 1804, e desse movimento surgiu o medo do haitianismo. Esse terror está ligado ao fato de que esse país não só conseguiu sua independência, mas acabou com a escravidão e penalizou os colonizadores donos de escravizados que estavam ainda na ilha.  Para explicar melhor o contexto, vamos lembrar que antes de ser Haiti o local se chamava São Domingos; e era colônia francesa desde o século XVII com uma economia baseada na cana-de-açúcar.

A França explorava a ilha e trazia pessoas sequestradas do continente africano para serem exploradas. Durante a Revolução Francesa, a ideia de liberdade circulava cada vez mais forte e não foi diferente nas colônias. Entre várias revoltas, uma delas se tornou a Revolução do Haiti, liderada por Toussaint Louverture .

Contudo, o importante aqui não é só falar da revolução de São Domingos, mas sobre o silêncio que existe sobre ela, a proibição acerca dessa revolução de escravizados na américa latina, o medo dos ventos do Haiti, a repressão em cima dos negros, o controle das informações e o isolamento da ilha. O grande isolamento de um país que estava em desenvolvimento quando era colônia, tinha um lucro, mas que só ficava na mão dos donos de escravizados, descendentes de europeus.

A não aceitação da independência ainda reflete no que a gente sabe sobre o Haiti hoje. O grande perigo de saber dessa história é o possível acionamento do debate entrelaçado sobre raça e classe. Não há como abordar esse assunto sem pensar na relação de senhor-escravizado. A ideia de que negros são inferiores e que não podem pensar por si cai por terra em diversos momentos da história, e esse episódio ainda traz uma revolução – o motor da humanidade – sendo liderada por africanos e seus descendentes, dentro de uma colônia, e penalizando europeus por todos os crimes cometidos contra a humanidade. Depois disso, há uma união dos colonizadores para dizimar qualquer fagulha por luta pela liberdade no qual as lideranças sejam descendentes de africanos, durante e após a escravidão.

Para os afrodescendentes em diáspora é negado o acesso a história da ilha que lutou pela liberdade e conseguiu sua independência, mas mesmo assim o Haiti teve seus filhos. A ilha de Granada em 1979 fez uma revolução comunista liderada por afrodescendentes do Movimento New Jewel, pensando em uma democracia que buscava o bem-estar da população pobre, com um Estado próximo ao povo. A presença das mulheres nessa revolução nos permite abordar os três pilares das opressões que mantém a sociedade capitalista em pé, as opressões de gênero, raça e classe. Granada foi invadida pelos Estados Unidos em 25 de Outubro de 1983 dando fim ao governo popular, atualmente o governo é uma monarquia parlamentar.

Já que falamos em EUA, é sempre bom lembrar da ilha criada pelo Partido dos Panteras Negras para Autodefesa dentro do país, que lutavam por igualdade e pelo fim da opressão sofrida pelos pretos, à época legitimada pela constituição. Os Panteras Negras tinham uma estrutura e organização que buscava defender os pretos da polícia norte-americana, mas pensava na construção de uma sociedade com base nos princípios da liberdade e igualdade. Tanto os panteras como o Movimento New Jewel tinham base marxistas, e foram abertamente atacados pelo governo norte americano. As ideias escritas pelos Panteras Negras em 1967 são atuais e mostram como o partido estava comprometido com a construção de uma nova sociedade:

  1. Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de nossa comunidade negra.
  2. Queremos desemprego zero para nosso povo.
  3. Queremos o fim da ladroagem dos capitalistas brancos contra a comunidade negra.
  4. Queremos casas decentes para abrigar seres humanos.
  5. Queremos educação para nosso povo! Uma educação que exponha a verdadeira natureza da decadência da sociedade americana. Queremos que seja ensinada a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual.
  6. Queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar.
  7. Queremos um fim imediato da brutalidade policial e dos assassinatos de pessoas negras.
  8. Queremos liberdade para todos os negros que estejam em prisões e cadeias federais, estaduais, distritais ou municipais.
  9. Queremos que todas as pessoas negras levadas a julgamento sejam julgadas por seus pares ou por pessoas das suas comunidades negras, tal como definido pela Constituição dos Estados Unidos.
  10. Queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz.

O negro revolucionário é o pesadelo dos capitalistas-patriarcais-racistas, esses são expurgados da história e não devem ter seus nomes ditos: Toussaint Louverture, Jean-Jacques Dessalines, Maurice Bishop, Angela Davis, Lélia Gonzalez, Maria Felipa, Frantz Fanon, Laudelina de Campos Melo, Tereza de Benguela…  Além de tudo, há uma indignação dos brancos escravagistas ao serem questionados sobre todo o sofrimento causado por conta da escravização de africanos e indígenas. Com a abolição foram construídas outras formas de manter as pessoas racializadas em locais de subalternidade, negando acesso à educação de qualidade, à saúde digna, à moradia, ao emprego de qualidade e à cultura.

O contato com essas histórias revolucionárias é um perigo na mente dos subalternizados, por isso não podem circular livremente ao vento. O medo do Haitianismo continua presente por que as opressões contra a população racializada ainda é a base do capitalismo. Pensar em revolucionários negros que abordam outras formas de viver em sociedade ainda é um ato de rebeldia. Uma sociedade baseada nos princípios de igualdade e na não exploração da mão de obra dos trabalhadores (racializados ou não) só é possível de ser imaginada e construída quando sabemos da história e olhamos para a ilha. Por isso, se você é filha ou filho de um trabalhador, cuidado! Não olhe para ilha, ela pode te revolucionar.

 

Referências:

  • MEEKS, Brian. Como uma revolução na pequena ilha de Granada abalou o mundo. In: https://jacobin.com.br/2021/05/como-uma-revolucao-na-pequena-ilha-de-granada-abalou-o-mundo/
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Brasil: Ubu Editora, 2020.
  • TROUILLOT, Michel-Rolph. Silenciando o passado: poder e produção da história. Tempo soc., v. 8, n. 2, 1996, p. 177 – 190. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20701996000200177>.

________________________________

Victoria da Paixão é mestranda do programa de Pós-graduação em História da UFBA. Ganhadora do prêmio Fundação Pedro Calmon pela lei Aldir Blanc na categoria memória com o trabalho “Apaoká: a história de mulheres negras para a difusão da memória do Estado da Bahia”. Faz parte do grupo de pesquisa Milonga: laboratório de pesquisa e extensão em direitos humanos, políticas públicas e gestão da diversidade, é Coordenadora da Comissão da Promoção por Igualdade Racial do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM) e colunista do Projeto Era Uma Vez Brasil.

 

Compartilhar este post por e-mail

Entre em Contato

Origem Produções

Ribeirão Preto / SP
+ 55 16 3623 8012

 

Por favor selecione um formulário válido