Era uma vez Brasil

REDES SOCIAIS DIGITAIS: INFORMAÇÃO VERSUS MANIPULAÇÃO

Imagem_Texto Redes Sociais_Jaque

    Por Jaqueline Queiroz

     

“Se você não está pagando pelo produto, você é o produto”.

­                                                                                   ­­- O dilema das redes. ­­

   É crescente o número de brasileiros que fazem uso diário de alguma rede social digital. Dados de uma pesquisa feita pela Report in Digital [i], em 2020, pouco antes do início da pandemia do Covid-19, apontou que o país possuía mais de 140 milhões de perfis ativos nas redes, ou seja, 66% da população brasileira. As estimativas também apontaram que a absorção da Internet no Brasil chegará a 72% até 2025 e que as redes sociais passarão a crescer em proporção semelhante.

  Será cada vez mais raro encontrar no Brasil quem não use ou nunca tenha usado Whatsaap, Facebook, Instagram, Tik Tok, Youtube, Twitter, e se for alguém com mais de 25 anos, provavelmente terá um sentimento de saudosismo ao lembrar-se dos já velhos e extintos Orkut e MSN. Aliás, foi com a chegada do Orkut em 2004 no Brasil que as redes sociais digitais começaram a se tornar populares por aqui. Mas o que era a princípio um misto de euforia, curiosidade e consolidação da possibilidade de mantermos contato a distancia com amigos, familiares e conhecer novas pessoas, com o passar dos anos foi assumindo uma dimensão cada vez mais totalizante sobre diversas áreas das nossas vidas.

  O tempo de uso diário em que passamos nessas redes é grande, o que aponta para uma dependência que muitos de nós já estamos submetidos.  Dados da pesquisa Global Digital Overview 2020, feita pelo site We Are Social em parceria com a ferramenta Hootsuite, mostrou que brasileiros acima de 18 anos, gasta em média 3h e 31 minutos diariamente nas redes sociais [ii]. Como parte da explicação para esse uso tão amplo, podemos considerar o fato de que algumas redes sociais também se tornaram ferramentas prioritárias de trabalho e espaços de validação profissional. Há uma tendência perigosa e crescente, de atribuirmos muita importância a alguém apenas por conta da quantidade de “seguidores” que ela tenha em suas redes.

  A consequência disso é que essas pessoas são alçadas publicamente como autoridade para falar sobre vários temas e assuntos, mesmo quando não possuem a qualificação necessária para o que se propõem. Uma reportagem publicada pela Agência Pública em março de 2021, comprovou que durante a pandemia do Covid-19 o Ministério da Saúde investiu até 1,3 milhão de reais em ações para fazer propaganda a favor do chamado tratamento precoce, que incluía o uso de hidroxicloroquina e ivermectina como método para tratar a Covid-19 [iii]. Esse dinheiro foi distribuído para que vários influenciadores digitais fizessem em suas redes a campanha a favor do tratamento precoce (tratamento este que foi totalmente comprovado como ineficaz a partir de rigorosos estudos feitos pela Organização Mundial de Saúde).

  Entre os influenciadores que foram pagos para propagandear informações falsas sobre a Covid-19, estavam inclusos alguns ex-participantes de realities shows, que não tinham nenhuma qualificação ou formação profissional na área da saúde. A única coisa que eles possuíam era um número grande de seguidores que muito provavelmente acreditaram no que foi dito por estes influenciadores.

  O exemplo supracitado em que o Ministério da Saúde, (um órgão do Poder Executivo do Brasil) financiou um grupo de influenciadores digitais para disseminarem em suas respectivas redes sociais informações que não tinham respaldo científico, mas que serviam aos interesses políticos do governo federal sobre a pandemia do Covid-19, é apenas um dentre vários casos dos usos com finalidades políticas e econômicas feitos por grandes empresas, órgãos e instituições nas redes sociais digitais.

  Esse cenário de manipulação se consolida e se torna mais fácil de ser executado, na medida em que a validação sobre a autenticidade de uma informação passa a ser analisada não pela checagem de dados e referências, mas pelo crivo do número de likes, seguidores e imagem do influenciador que informa. Nas redes sociais digitais a fama e o status social de “quem” diz é mais importante do que o teor verídico ou não daquilo que é dito.

  Mas não são apenas os influenciadores digitais que são capitalizados por governos, empresas e instituições para fazerem parte do jogo político da manipulação de informações nas redes. Existe outra situação que pode ser talvez, ainda mais nociva, visto que é protagonizada pelos próprios donos das maiores empresas de tecnologias e redes sociais digitais, e se tornou um dos principais sustentáculos do neoliberalismo atual: o controle e a venda de dados dos usuários de redes sociais.

  “Se você não está pagando pelo produto, você é o produto”. “Foi você quem escolheu ou foi o algoritmo que fez você escolher?” Essas frases são do documentário O dilema das redes, produção da Netflix do ano de 2010 [iv] e expressam bem o nível de poder e controle que estão concentrados nas mãos dos criadores e donos de empresas como o Google, Facebook, Instagram, Amazon, Twitter, entre outras. De forma didática e bem respaldada quanto as suas fontes, o documentário apresenta de que forma grande parte das sociedades estão se transformando a partir da manipulação e distorção de dados pessoais em larga escala.

  O dilema das redes mostra como o uso de inteligência artificial, supercomputadores e algoritmos, que estão cada vez mais sofisticados e precisos, são utilizados para que capturem os nossos dados quando usamos as redes sociais, e através da captura e retenção contínua de informações, vão moldando nossos gostos, opiniões e manipulando o que vamos ter acesso ou não nas redes sociais. Nós somos o produto e os nossos dados são leiloados sem o nosso conhecimento para grandes empresas que financiam as redes sociais em troca do acesso das nossas informações, que são usadas para todo o tipo de propósito (a maior parte de cunho não ético) como é apresentado no documentário.

  “As empresas mais ricas são as de tecnologia. Google, Facebook, Amazon, Tesla. E a razão pela qual essas empresas são as maiores do mundo é porque no ano passado dados superaram o petróleo em valor. Dados são os recursos mais valorizados da Terra. E essas empresas são valiosas porque elas têm explorado os recursos das pessoas.” Este trecho é do documentário Privacidade Hackeada, também da Netflix [v], e é uma produção importante pois discute de forma mais  direcionada e aprofundada sobre os impactos da comercialização de dados dos usuários no campo político.

  O documentário apresenta e faz correlações que nos ajudam a entender como o maior escândalo de venda de dados do Facebook redefiniu uma nova forma de manipular eleições e desestabilizar governos. Em 2014 a empresa Cambridge Analytica começou a recolher informações pessoalmente identificáveis de usuários do Facebook, estima-se que 87 milhões de usuários tiveram seus dados coletados sem a sua autorização. Essa imensa quantidade de informações foi comercializada e utilizada de forma massiva em campanhas eleitorais.

 A partir desses dados foi possível montar perfis psicológicos dos eleitores e saber quem era os “persuasíveis”: aqueles que acreditariam mais facilmente em fake news e para quem eram disparados de forma regular, informações falsas nas suas redes sociais. Essa estratégia foi amplamente utilizada em várias campanhas eleitorais de diferentes países, incluindo a eleição em que Donald Trump, candidato da extrema direita norte americana, ganhou e se tornou presidente dos Estados Unidos em 2016. O controle, comercialização e manipulação dos dados de usuários de redes sociais digitais foi elemento central para a vitória de Trump, e por aqui no Brasil, esse mecanismo também foi utilizado na campanha presidencial de 2018, no qual o candidato também da extrema direita Jair Bolsonaro saiu vencedor.

  O controle e manipulação dos dados e do conteúdo que circula nas redes sociais, tornou-se elemento central para garantir o poder e continuidade das dinâmicas de desigualdades sociais. A noção de que as redes sociais digitais seriam espaços democráticos no seu potencial de dar voz e vez para minorias políticas, se mostra frágil e pouco factível quando entendemos a fundo quais são os interesses e compromissos das pessoas que são donas e administram essas redes.

  Recentemente o The Intercept Brasil divulgou uma reportagem sobre como o Google, Facebook e Amazon ajudaram a divulgar e fortalecer a campanha contra o aborto legal nos EUA [vi]. O grupo formado por gigantes da tecnologia não são abertamente antiaborto, o real interesse que os fizeram apoiar a campanha liderada por grupos conservadores foi ter como moeda de troca o não andamento das políticas sobre regulamentação dos dados dos usuários das redes sociais. Ao mesmo tempo em que vendem a ideia de que as redes sociais são espaços democráticos e inclusivos, os donos dessas empresas estão apoiando e ajudando projetos que são contra minorias políticas.

   Todo esse debate é muito relevante, pois nos ajuda a entender melhor o contexto e engrenagens que possibilitaram a ascensão de líderes neofascistas, como ocorre o uso de fake news e de dados pessoais dos usuários para direcionamento de propaganda com conteúdo distorcido e a desestabilização de regimes democráticos. Esse cenário dificilmente será revertido, visto que ainda não existe uma regulamentação definida que proteja os nossos dados nas redes sociais. Essa regulamentação deveria ser alvo de mobilizações mais intensas, visto que se trata de uma questão ética e moral, cuja ausência vem trazendo graves impactos negativos na ordem política e econômica mundial.

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Jaqueline Queiroz

Professora e Historiadora

Graduanda em Direito na UFBA

E-mail: jaquelinequeiroz18@yahoo.com.br

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REFERÊNCIAS

[i]  BERTICELLI, Caroline. O uso das redes sociais no Brasil e as mudanças durante a pandemia. Ninho digita, 2022.  Disponível em < https://ninho.digital/uso-das-redes-sociais/>. Acesso em 14 de outubro de 2022.

[ii]  MORENO, Diego. Brasileiro fica 3h e 31 minutos por dia nas redes sociais. Agência Visia, 2020. Disponível em < https://www.agenciavisia.com.br/news/brasileiro-fica-3-horas-e-31-minutos-por-dia-nas-redes-sociais/>. Acesso em 14 de outubro de 2022.

[iii] FLECK, Giovana. Influenciadores digitais receberam até 23 mil reais do governo Bolsonaro para propagandear atendimento precoce contra Covid-19. Agência Pública, 2021. Disponível em < https://apublica.org/2021/03/influenciadores-digitais-receberam-r-23-mil-do-governo-bolsonaro-para-propagandear-atendimento-precoce-contra-covid-19/>. Acesso em 15 de outubro de 2022.

[iv] The social dilema. Direção: Jeff Orlowski. Produção: Exposure LabsThe Space ProgramArgent PicturesAgent Pictures. Estados Unidos: Netflix, 2020.

[v] Privacidade Hackeada. Diretores: Karim AmerJehane Noujaim. Produção: Netflix. Estados Unidos: Netflix, 2019.

[vi] BIDDLE, Sam. Amazon, Google e Facebook, ajudaram a bancar fim do aborto legal nos EUA. The Intercept Brasil, 2022. Disponível em < https://theintercept.com/2022/10/05/amazon-google-facebook-aborto-eua/>. Acesso em 15 de outubro de 2022.

Imagem de capa:  Reprodução/Documentário “Dilema das redes” – Netflix.

 

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