Era uma vez Brasil

O Brasil é blues: um olhar sobre o racismo religioso

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mae stella oxossi

“Tudo que quando era preto era do demônio

E depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues

É isso, entenda

Jesus é blues”

A escravização das pessoas africanas pelos europeus é uma ação conhecida, porém são poucas pessoas que sabem o papel da Igreja Católica na escravidão e na tentativa de assassinato do continente africano. Para isso vamos recorrer a bíblia:
“Gênesis – 18 Ora, os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; e Cam é o pai de Canaã. 19 Estes três foram os filhos de Noé; e destes foi povoada toda a terra. 20 E começou Noé a cultivar a terra e plantou uma vinha. 21 Bebeu do vinho, e embriagou-se; e achava-se nu dentro da sua tenda. 22 E Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai, e o contou a seus dois irmãos que estavam fora. 23 Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre os seus ombros, e andando virados para trás, cobriram a nudez de seu pai, tendo os rostos virados, de maneira que não viram a nudez de seu pai. 24 Despertado que foi Noé do seu vinho, soube o que seu filho mais moço lhe fizera; 25 e disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos. 26 Disse mais: Bendito seja o Senhor, o Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. 27 Alargue Deus a Jafé, e habite Jafé nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo.”
Uma das justificativas utilizadas para permitir a escravidão foi esse trecho, colocando um continente inteiro como Canaã, assim a marcar que Cam carrega seria a cor da pele, mas em nenhum momento a biblia afirma que isso se refere a África, poderia muito bem se referir a Europa, sendo eles assim servos… Enfim, essa não é a questão do texto, o ponto é que desde esse período tudo que era negro era considerado do demônio, como diz a música de Baco Exu do Blues, por isso foi necessário embranquecer Jesus nascido no Oriente Médio. Já foi provado cientificamente que Jesus não é branco, não tem olhos azuis e muito menos cabelo liso, mas para que os europeus pudessem usar o cristianismo como arma de dominação contra outros países fizeram do filho de Deus sua imagem e semelhança. Cam que antes tinha sua cor igual a de Jesus torna-se o extremo oposto, assim começa a dominação dos corpos e das mentes. Todas as pessoas que estão na bíblia e são nascidos na Palestina que seriam hoje considerados marrons são embranquecidos, tornando a religião europeia afastada da África e da Ásia.

Dado esse contexto, chegamos aqui no Brasil de 2022 onde o cristianismo continua sendo usado para demonizar as culturas e religiões não europeias. A cultura indígena sofreu nos últimos 4 anos uma perseguição de diversos locais, primeiro com o assasinato de lideranças e de crianças por grileiros com o apoio do governo federal e segundo com as continuadas evangelizações incentivadas pela ministra Damares. Infelizmente não há um debate aberto sobre a proibição de entradas de evangelizadores não indígenas nas aldeias, que tem o intuito de acabar com a cultura que resiste desde 1500, por isso temos que pensar a preservação para além dos museus, mas com as línguas e modo de viver nas aldeias que se modificam internamente e externamente sem precisar de evangelização. As culturas indígenas e afro-brasileiras não têm como característica a estagnação, mas sim o movimento das águas e do vento, contudo a evangelização desses povos quer impor um modelo de ser paralisante e excludente. E pior do que isso, querem impor a cultura do medo, o medo de usar as ervas medicinais e religiosas porque elas são “do demônio”, o medo de usar a língua materna porque ela é “do demônio”, o medo de amar, o medo de viver, o medo de ser feliz, o medo de pensar livre… porque tudo isso “é do demônio”, porém o demônio não existe nas religiões de matrizes africanas e indígenas. O demônio torna-se uma forma de controle social, para manter a sociedade em um formato que continua privilegiando aqueles que ganham com a exploração da classe trabalhadora.

A pacificação dos trabalhadores passa por esse processo de demonização da cultura e medo dos corpos dissidentes, por isso muita coisa foi proibida e por fim embranquecida, como o Samba que antes falava sobre não trabalhar para não enriquecer o patrão e foi proibido na Era Vargas, até ser esvaziado ao ponto de falar que trabalhar é bom. Podemos trazer o mais novo a ser embranquecido, o Funk e os bailes de favela, que cantavam sobre como era a realidade dos morros do Rio de Janeiro, mas hoje fala sobre uma ostentação financeira cada vez mais distante da realidade do pobre. Em Salvador está sendo criminalizado os paredões onde toca o pagode baiano, que ocorre nos bairros periféricos, como uma forma de lazer já que a periferia é mal vista no centro da cidade. Mas os cantores do pagodão já estão sendo cooptados a tocar em cercados cada vez mais caros. Essa desmobilização do lazer faz com que se crie a ideia que o pobre só pode trabalhar, a demonização desses segmentos musicais faz com que a igreja seja o único local de socialização, mas que para entrar precisa estar em um padrão.

Surge assim o medo dos corpos dissidentes, todo corpo assumidamente, negro, indígena, asiatico, transxexual, sapatão, bixa, gordo, periferico e revolucionario deve ser isolado dessa sociedade que busca por Canaã. São corpos que ao caminhar na rua incomodam o olhar de quem só quer ver no espelho o Jesus branco, o incômodo é tamanho que queimam a imagem de Mãe Stella de Oxóssi. O medo criado em cima das religiões de matrizes africanas faz com que pessoas negras sejam usadas contra os seus iguais, esquecendo que a sua ancestralidade veio do continente africano, mas esse medo não é em vão.

O candomblé é uma religião sem demônio, onde as pessoas aprendem a viver em comunidade, em que todos podem comer, que os privilégios vem por idade, mas são privilégios cheios de obrigações com os mais novos, é uma religião que protege o meio ambiente e subverte essa ideia do capital que é preciso explorar uns aos outros para viver em sociedade, sem o inferno, essa religião vive por conta da conexão com a ancestralidade e não do medo do purgatório. Por isso tão perseguida, um local onde homens e mulheres negras se sentem valorizados, longe do olhar arreador do patrão. A demonização do Orixá Exu é por conta dele ser o princípio, aquele que abre os caminhos e se comunica com os outros Orixás, Exu não faz mal, é o Orixá que sabe escutar os mais novos e traduzir para a língua dos mais velhos, precisamos de Exu para aprender a viver e qual caminho pegar nas encruzilhadas da vida.

Se fala hoje em racismo religioso por conta da perseguição ser feita em cima das religiões indígenas e de matrizes africanas, essas religiões que tem como base uma cultura que não reforça o capitalismo. Trazendo uma crítica que é feita ao candomblé – sem querer falar do nosso secreto – é o sacrifício de animais, porém não se é criticado a quantidade de animais sacrificados no período do Natal, o sofrimento que eles passam no processo de engorda, pois seria criticar não só a religião, mas também o capital que lucra com isso.

Qual cultura e religião é aceita está sim veiculada com a exploração do trabalhador, pois são esses locais de sociabilidade dissidentes que traz o questionamento nessa busca por Canaã. Canaã não é no continente africano, Canaã é todo o local onde continua a servidão, Canaã é todo local onde se mata uma pessoa só porque ela é diferente, Canaã é onde a mãe carrega o filho morto pela polícia, Canaã é onde uma pessoa Trans vive até os 30 anos, Canaã é onde o racista anda livre, Canaã é onde se tem medo da encruzilhada. É isso, entenda, Canaã é aqui.

Victoria Paixão

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