Era uma vez Brasil

Por uma democracia da desordem!

Por uma democracia da desordem!

Victoria da Paixão

 A democracia [1] é o regime político vigente no Brasil, mas em diversos momentos essa democracia está em risco ou nos faz pensar se de fato ela um dia existiu por aqui. A começar que um regime democrático tem como característica a igualdade, onde cidadãos elegíveis são votados para representar o povo na administração do país – criação de leis, administração financeira, saneamento básico etc. -pensando nas necessidades daqueles que são representados.

 No entanto, a possibilidade de ser votado é desigual entre as pessoas: quem tem mais recursos financeiros consegue manter a propaganda de forma massiva, mas pessoas pobres, mulheres e homens negros, LGBTQIAPN+ [2] e homens e mulheres indígenas não têm acesso fácil às grandes mídias e ao fundo eleitoral. Foi necessário criar cotas para alguns desses grupos usufruírem desses recursos; e mesmo assim muito desse dinheiro foi desviado para quem não precisava [3]. No final, a possibilidade de voto fica entre homens brancos-cis-heteros-cristãos e representantes da burguesia, que não estão preocupados com o povo, mas sim com o lucro de empresas e famílias do agronegócio descendentes de escravocatas. Esse é um dos pontos que nos faz questionar se vivemos mesmo em um regime democrático. O segundo ponto é que a mão armada do Estado – esse mesmo Estado comandados por esses homens – está mais preocupada em proteger grandes propriedades privadas do que o povo. Mais do que isso: essa mão armada, se for necessário, matará essa população. Não há, portanto, igualdade de direitos no Brasil desde 1500.

 Até 2002 o nosso país não tinha grandes avanços sociais, a luta por qualquer melhoria da vida da população pobre era mal vista. Nos governos Lula e Dilma houve alguns avanços, como a implementação de cotas nas universidades, programas para casa própria, projetos como o Fome Zero, Luz para todos, Ciência Sem Fronteiras, pagamento da dívida ao FMI, entre outros pequenos passos. Sim, pequenos passos por que deveria ter sido feito mais, como a demarcação das terras indígenas, fim da polícia militarizada, uma valorização maior do SUS e das escolas públicas, enfim, poderia dizer que é apenas passado, mas não é. O que foi feito foi o suficiente para que se encubasse uma revolta contra esses avanços, uma revolta chamada fascismo [4].

 Após o Golpe de 2016 houve uma crescente adesão aos pensamentos fascistas no Brasil, não de forma velada como antes acontecia, mas sem nenhum pudor a aproximação com essa ideologia. Durante o voto do Impeachment da presidenta Dilma houve homenagens a ditadores. Durante o governo Temer foi implementada a reforma trabalhista e o teto de gastos. A primeira ação deixou os trabalhadores mais vulneráveis em relação aos seus patrões, a segunda fez com que os valores, que antes eram destinados às camadas mais vulneráveis da população, não recebessem o aumento necessário para cobrir as despesas. A saúde e a educação pública foram prejudicadas com o teto de gastos. Essas duas trazem o controle da classe trabalhadora, que não tem acesso a uma educação de qualidade e por isso não pode ter um emprego melhor, aceitando qualquer situação para se manter empregado, com medo de um dia ficar doente e não poder pagar um médico e morrer na fila do SUS. Essa é uma das camadas do controle da vida pública.

 Cansades? [5] Só que o Brasil não para, com a eleição do ex-presidente Bolsonaro, o controle da vida privada entra em pauta, a começar pela perseguição aos povos tradicionais e suas culturas. A religião cristã entra na pauta do Estado e sua valorização faz com que cresça uma onda de atos contra terreiros de candomblé e povos indígenas. Nada passa despercebido pelo fascismo bolsonarista, o negacionismo contra a ciência e a educação cria uma das maiores crises de saúde no Brasil, com a morte de quase 700 mil pessoas de covid-19. Foram quatro anos de passeatas a favor da ditadura, de perseguição aos jornalistas, de negacionismo, de exploração da classe trabalhadora e assassinato de negros e indígenas. O anticomunismo cresceu com a perseguição de professores e universidades. Seriam páginas e páginas para descrever o fascismo bolsonarista, que é antigo no nosso país, mas que atualmente tem esse nome, o nome de um mito.

 Por isso, após a eleição do presidente Lula, os fascistas bolsonaristas buscam formas de manter a ilusão, criam mil planos sobre o que está acontecendo e vivem nessa expectativa de que “uma revolta na ordem” irá finalmente acontecer. Mesmo com o seu Messias fora do país, vão até os militares pedir apoio e com seus privilégios brancos atacam as sedes do governo em Brasília. Não podemos mais negar que são fascistas, após o ocorrido no dia 8 de Janeiro de 2023 não é mais possível negar que os quatro anos do governo Bolsonaro foram de um governo fascista. O medo das melhorias sociais é tão grande, mesmo que melhorias pequenas, que não podemos nos enganar e pensar que eles vão parar após essa invasão em Brasília.

 Eles fizeram a revolta da ordem, a ordem em que todos devem ser brancos caucasianos, a ordem que todos devem ser burgueses, a ordem em que todos devem ser cis-héteros e cristãos, a ordem contra a diversidade.

 Nós precisamos fazer a revolução da desordem, com eleições que a maioria dos candidatos de fato representem os trabalhadores, na qual não haverá fome e todes terão um teto, e poderemos amar em paz, ser quem somos sem medo, e descobrir como é sentir a liberdade. Precisamos de uma democracia que reflita a diversidade do nosso povo. Vamos levantar e lutar, não por essa democracia que vivemos, mas pela democracia da desordem que virá.

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1. Substantivo feminino. 1. Governo em que o povo exerce a soberania. 2. Sistema político em que os cidadãos elegem os seus dirigentes por meio de eleições periódicas.

2. https://orientando.org/o-que-significa-lgbtqiap/

3. http://www.eraumavezbrasil.com.br/cotas-raciais-uma-politica-publica-que-nao-sai-do-debate/

4. Fascismo é uma ideologia de extrema-direita que se baseia na ideia de raças superiores, no anticomunismo e na ordem. O fascismo é contra a luta de classes, por isso busca controlar a classe trabalhadora na vida pública e privada. Segundo o autor João Bernardo, em seu livro “Labirintos do fascismo: Na encruzilhada da ordem e da revolta” o fascismo foi “uma revolta na ordem”. 

5. https://g1.globo.com/educacao/noticia/2023/01/06/todes-saiba-o-que-e-a-linguagem-neutra-usada-em-eventos-do-governo-lula.ghtml

 

 

Victoria da Paixão é mestranda do programa de Pós-graduação em História da UFBA. Ganhadora do prêmio Fundação Pedro Calmon pela lei Aldir Blanc na categoria memória com o trabalho “Apaoká: a história de mulheres negras para a difusão da memória do Estado da Bahia”. Faz parte do grupo de pesquisa Milonga: laboratório de pesquisa e extensão em direitos humanos, políticas públicas e gestão da diversidade, é Coordenadora da Comissão da Promoção por Igualdade Racial do Instituto Baiano de Direito e Feminismos (IBADFEM) e colunista do projeto Era Uma Vez Brasil.

 

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