Segregação Urbana e os impactos na educação da população negra e periférica
Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”
Carolina Maria de Jesus
Pensar o acesso à educação de qualidade, no Brasil e no mundo, é prioritário na construção de uma realidade menos desigual e mais justa. Encarar os desafios na edificação de uma educação de qualidade passa por avaliar os diferentes problemas que afetam a sociedade. A maneira como o espaço urbano é estruturado é um ponto crucial de leitura sobre os acessos aos serviços fundamentais como saúde, segurança pública e educação. A primeira afirmação a ser feita sobre o Brasil e suas metrópoles, acerca do espaço urbano, é que esse é segregado. A segregação urbana segundo Flávio Vilaça em sua obra de 2001, “Espaço intra-urbano no Brasil”, é definida como a concentração em diferentes regiões de classes sociais distintas ou a diferenciação social entre as moradias entre as camadas sociais mais ricas e as mais pobres.
A segregação urbana acontece devido a valorização diferencial do solo, o que significa dizer que, determinadas regiões da cidade são mais valorizadas que outras fazendo com que ocupação do espaço urbano obedeça a regras de mercado e valor de renda. Essa valorização pode acontecer por vários fatores, como a qualidade da infraestrutura urbana e seus serviços, a especulação imobiliária, quando empresas do ramo imobiliário ou investidores compram terrenos e imóveis e aguardam pela valorização do local ou realiza uma série de investimentos que elevem os preços. Pode ocorrer ainda o processo de gentrificação, quando o espaço urbano ocupado por pessoas de baixa renda é reformulado sendo transformado em áreas nobres e expulsam a antiga população que ali vivia.
O processo de segregação urbana gera a periferização ou favelização. Como áreas centrais de uma metrópole costumam ter preços elevados, resta a população de baixa renda ocupar as regiões mais distantes do centros e com menor infraestrutura, onde os preços dos terrenos, imóveis e aluguéis são mais acessíveis. Esses locais costumam não dispor de uma rede de infraestrutura bem desenvolvida em seus inícios e acarretam uma série de problemas aos moradores.
Quando escrutinamos diferentes períodos da história do Brasil através da literatura encontramos escritores e escritoras nos relatando a vida nessas áreas periféricas: Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo. O escritor Lima Barreto em seus diversos romances explora a vida nos subúrbios cariocas, mais um em específico, é muito precioso para o nosso debate, Clara dos Anjos, concluído sua escrita em 1922 e publicado em 1948:
“Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.” Em outro momento da narrativa Lima escreve: “O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes deem alguma coisa, para o sustento seu e dos seus filhos.”
O autor expõe quem são os moradores dos subúrbios cariocas e esses são, os moradores dos subúrbios das grandes cidades brasileiras, a classe trabalhadora de baixa renda. A classe trabalhadora que constrói a riqueza desse país mas que não tem acesso aos frutos do seu trabalho árduo. Quando avançamos no tempo, para o final da década de 1950 e início de 1960, Carolina Maria de Jesus conta a realidade da favela onde morou no Canindé em São Paulo: “As oito e meia eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.” Em outra passagem: “Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.” A diferenciação que Carolina denuncia em seu livro e que lhe causa angústia existe até hoje: “A favela é o quarto de despejo. E as autoridades ignoram que tem o quarto de despejo.”
Não é coincidência que os escritores supracitados sejam negros, a segregação urbana existe no mundo por diferentes fatores, no Brasil ela se coloca como um elemento de segregação de classes sociais o que significa dizer segregação étnico-racial, como escreve Sílvio Almeida em “Racismo Estrutural”: “Para Clóvis Moura, a luta dos negros desde a escravidão constitui-se como uma manifestação da luta de classes, de tal sorte que a lógica do racismo é inseparável da lógica da constituição da sociedade de classes no Brasil, […].”
Por isso a reportagem do Diplomatique, publicada em 23 de agosto de 2021, escrita por Marcelo Pagliosa, Tanielle Abreu e César Minto, chama-se: “Apartheid brasileiro e os olhos que teimam em desolhar”. Apartheid é a palavra em africâner para separação e deu nome ao regime de segregação racial na África do Sul que vigorou de 1948-1994. A segregação urbana no Brasil constitui-se portanto como uma separação étnico-racial, na qual a população negra é a mais atingida. Como aponta a reportagem a expectativa média de vida das pessoas se alteram de bairro para bairro, se o CEP define a expectativa de vida da população brasileira, o quanto a segregação urbana afeta o processo educacional? Dito de outro modo, de que maneira a segregação urbana afeta a educação de pessoas negras e periféricas no Brasil?
As periferias das grandes cidades na sua maioria estão longe dos centros urbanos onde costumam ficar os melhores serviços médicos, as melhores escolas, as universidades públicas. A primeira barreira que se coloca portanto é o transporte. Deixando o tom impessoal de lado e narrando minha vivência como alguém que morou na periferia da cidade de Salvador por 12 anos e que nesse mesmo tempo cursou o ensino médio e a faculdade, ambas distantes do meu local de moradia, posso afirmar como isso impactou demasiado o meu processo educacional e de tantos outros colegas na mesma situação.
O custo alto do transporte público já dificulta a mobilidade, muitas vezes tive que fazer o percurso a pé no meu ensino médio, uma caminhada que durava uma hora da minha casa à escola, chegar na escola depois desse tempo já afetava a minha disposição para estudar, bem como a volta para casa também, mesmo quando podia utilizar o transporte, a demora do ônibus, os engarrafamentos, os ônibus lotados, afetavam a minha disposição para o estudo e o mesmo acorre com outros milhares de estudantes deste país. Qualquer atividade fora dos dias comuns de aula significaria gastos extras com transporte e alimentação como as aulas aos sábados ou no turno oposto.
A implementação de cursos noturnos na Universidade Federal da Bahia em 2009 foi um grande avanço no acesso ao ensino superior, e pude como tantos outros trabalhadores fazer uma graduação. Porém as dificuldades impostas pela segregação urbana persistem. A violência urbana atinge toda a cidade, porém mais intensamente as áreas periféricas, como Lília Schwarcz aponta em “Sobre o autoritarismo brasileiro” o narcotráfico e a ação policial são responsáveis pelo grande índice de homicídio do país. Estudar a noite, portanto, implica o risco da violência. No curso noturno é comum que alunos que morem distante, nas grandes periferias, cheguem atrasados à aula, bem como precisem sair mais cedo. A dificuldade de transporte, o perigo dos assaltos nos coletivos, o risco de tiroteios entre facções rivais ou de ações policiais violentas nas comunidades, levam os alunos a deixarem a sala de aula muito antes do término.
Num dos contos mais viscerais, da célebre escritora Conceição Evaristo, “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos” na coletânea “Olhos d’água” publicado em 2014, temos uma criança vítima da violência que impera nos bairros populares das grandes cidades. “Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava”. Estudar, portanto, para a maioria da população negra, moradora das periferias deste país, é uma constante luta contra um mundo de adversidades. Transporte, segurança pública, permanência nas escolas, nas universidades. A cidade é construída como um labirinto, cheios de perigos e armadilhas, “A morte brinca com balas nos dedos-gatilhos dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pipocar dos tiros: – A gente combinamos de não morrer!” (EVARISTO, 2016, pp. 99). Eles combinaram de nos matar, a gente combinamos de estudar, de aprender, de viver, de lutar. Conceição Evaristo diz: “Escrever é uma maneira de sangrar” e eu digo que estudar também. A construção de uma sociedade mais justa e mais igual, mais livre se faz com acesso à educação e o acesso a elas se faz dentre tantas outras coisas destruindo muros, fronteiras, apartheid e segregações de todos os tipos.
Professor Paulo Sérgio da Silva Souza
Referências:
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.
LIMA, Barreto. Clara dos Anjos. São Paulo: Penguin Companhias das Letras, 2012.
EVARISTO, Conceição. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016.
ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.
SCHWARCZ, Lilia M. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
VILAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESB: Lincoln Intitute, 2001.
Reportagem:
PAGLIOSA, Marcelo; ABREU, Tanielle; MINTO, César. Apartheid brasileiro e olhos que teimam em desolhar, Le Monde Brasil Diplomatique, 23 de agosto de 2021.
Disponível em: https://diplomatique.org.br/apartheid-brasileiro-e-olhos-que-teimam-em-desolhar/ acesso em: 19 de outubro 2022.
Trechos:
“A segregação urbana no Brasil constitui-se portanto como uma separação étnico-racial, na qual a população negra é a mais atingida. Como aponta a reportagem a expectativa média de vida das pessoas se alteram de bairro para bairro, se o CEP define a expectativa de vida da população brasileira, o quanto a segregação urbana afeta o processo educacional? Dito de outro modo, de que maneira a segregação urbana afeta a educação de pessoas negras e periféricas no Brasil?”
“No curso noturno é comum que alunos que morem distante, nas grandes periferias, cheguem atrasados à aula, bem como precisem sair mais cedo. A dificuldade de transporte, o perigo dos assaltos nos coletivos, o risco de tiroteios entre facções rivais ou de ações policiais violentas nas comunidades, levam os alunos a deixarem a sala de aula muito antes do término.”
“Eles combinaram de nos matar, a gente combinamos de estudar, de aprender, de viver, de lutar.”
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